Pactos sociais, fiscais e ambientais para uma Ibero-América com mais direitos

A sociedade civil ibero-americana demanda um novo pacto social para abordar os desafios ambientais, sociais, econômicos e digitais com uma perspectiva de direitos que preserve a saúde democrática. Para isso, a Agenda 2030 deve ser retomada como horizonte comum

Pactos sociais, fiscais e ambientais para uma Ibero-América com mais direitos
Foto: © Jorge Gardner/ Unsplash

Ante uma confluência de crises econômica, social, ambiental e política, agravadas pelo conflito na Ucrânia e as sequelas da pandemia COVID, mais de 2.600 organizações cívicas insistem na urgência de um novo pacto social para afrontar, de maneira justa, as transições social, econômica, ecológica e digital, assim como assentar as bases de uma recuperação com transformação que permita um pleno exercício dos direitos.

“Necessitamos retomar a ideia de um novo pacto social que implique uma nova forma de relacionamento humano no qual a justiça social, econômica, financeira, ambiental, racial, de gênero e geracional sejam a prioridade. A igualdade de direitos deve ser um eixo central da governança na região”, recolhe a Declaração do XIV Encontro Cívico Ibero-americano que reuniu redes, plataformas e movimentos sociais de 19 países ibero-americanos para fazer chegar aos governos “a realidade de muitas pessoas na Ibero-América que não sempre têm a possibilidade de que sua voz seja ouvida”.

Desde antes da crise COVID, as organizações sociais ibero-americanas já tinham colocado sobre a mesa a importância de alcançar grandes consensos para lutar contra a desigualdade e a pobreza, garantir melhores condições laborais ou abordar com maior decisão o desafio meio ambiental.  Já para finais de 2019—poucos meses antes da emergência por Coronavírus—uma onda de protestos evidenciava que o descontento social e a desconfiança cidadã para os governos havia chegado a níveis limite em distintos países da Ibero-América, situação que se agravou com a crise COVID e as consequências da guerra na Ucrânia.

“Apesar de a situação atual ser sumamente complicada perante a superposição de crises que se somam às brechas estruturais que a Ibero-América já arrastava, também pensamos que este contexto complicado faz ainda mais necessário trabalhar para alcançar esse pacto social”, argumenta Carlos Botella, vogal da Coordenadora de ONGD da Espanha, que aglutina organizações sociais dedicadas à cooperação internacional e à ação humanitária e uma das entidades que organizam, desde 2005, o Encontro Cívico Ibero-americano.

A sociedade civil da Ibero-América defende a urgência de um novo pacto social para uma transição econômica, ecológica e digital que garanta o cumprimento de direitos.

“Insistimos neste pacto social precisamente porque ainda não chegou e porque não fazê-lo significaria aprofundar as brechas sociais, a perda de direitos, o descontento e desconfiança da cidadania para as instituições, o que por sua vez, deriva em maior polarização e violência social”, amplia Botella.

A crise derivada da pandemia “permitiu entender com maior amplitude o valor do público, visto mais além do governamental”. Em opinião de Botella, esta maior valorização do público, o comum e o comunitário, abre uma oportunidade para alcançar esses grandes consensos a fim de preservar esses bens coletivos associados a direitos como a educação, a saúde, o meio ambiente ou a proteção social.

O que representa este novo pacto social?

Para as organizações sociais integrantes do Encontro Cívico, este grande pacto social envolve grandes acordos, compromissos e ações entre os atores econômicos, políticos e sociais para cimentar um novo modelo de desenvolvimento, que “coloque as pessoas e o planeta no centro de todas as transformações”, com especial ênfase na luta contra a desigualdade, que em suas palavras “é uma questão urgente na América Latina e no Caribe”.

“Não podemos aceitar que a desigualdade seja vista como algo normal, porque estas desigualdades, na prática, representam um freio para que as pessoas possam exercer plenamente seus direitos”, explica o vogal da Coordenadora de ONG da Espanha, que defende que este pacto social não é uma receita única para todos os países, senão um “roteiro que deve ser implantado de forma específica à realidade de cada país”.

Trata-se de um processo que deve ser abordado desde diferentes enfoques: econômico, social, político, ambiental ou digital, mas sempre desde uma visão de direitos na qual a Agenda 2030 seja um horizonte e objetivo comum, explica Botella.

Nesta mesma linha, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) explica que este novo contrato social deve ser construído através de pactos em âmbitos específicos (educação, saúde, direitos laborais, proteção social) entre governos, sociedade civil, sindicatos, empresas e demais atores sociais que intervêm em sua implementação e que, posteriormente, se incorporam aos planos nacionais de desenvolvimento de cada país.

“Não podemos aceitar que a desigualdade seja vista como uma característica normal da América Latina, porque estas brechas, na prática, limitam o exercício dos direitos”.

 

Em seu relatório de Perspectivas Econômicas de 2021 que dedica um capítulo inteiro à formulação deste novo contrato social, a OCDE adverte que “alcançar pactos justos e estáveis requer a participação em processos de formulação de políticas abertos e inclusivos (…) que derivem da captura de políticas por parte das elites”.

Onde começar? A juízo das organizações sociais ibero-americanas, estas reformas integrais, tantas vezes adiadas, deveriam ter como ponto de partida uma política fiscal progressiva e um sistema integral de cuidados que permita proteger os mais vulneráveis e repartir os custos das transições econômicas, ambientais e digitais.  Além disso, este sistema integral de cuidados também tem o potencial de gerar valor econômico e empregos a partir da chamada “economia dos cuidados”, explicam desde as organizações sociais.

Pacto fiscal e financiamento ao desenvolvimento

Ante a difícil situação da maioria das economias latino-americanas, uma das chaves é, precisamente, contar com sistemas arrecadatórios mais justos que permitam reduzir as desigualdades e fortalecer as capacidades de investimento público.  “É importante que a região avance para sistemas fiscais progressivos onde aqueles que mais têm assumam também uma maior responsabilidade”, defende Carlos Botella.

Em sua opinião, a América Latina ainda tem margem para melhorar a arrecadação via impostos como política de redistribuição da riqueza e para a renegociação da pesada carga da dívida pública através de agendas compartilhadas a nível multilateral.

Neste sentido, países como a Espanha e Portugal na Comunidade Ibero-americana, teriam um papel decisivo para fomentar estas iniciativas em foros internacionais, em linha com a proposta da última Cúpula Ibero-americana sobre uma nova arquitetura financeira internacional, argumenta.

A Presidência espanhola da União Europeia que arrancou em julho de 2023 abre uma janela de oportunidade para debater estes assuntos no marco de uma nova agenda União Europeia-América Latina, na qual a sociedade civil também demanda espaços de participação, avança Botella.

Uma política fiscal progressiva e uma economia dos cuidados deveriam centrar a definição de grandes consensos com a Agenda 2030 como horizonte comum

O avanço para sistemas fiscais mais redistributivos também esteve presente nas análises da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), que em seu Panorama Fiscal 2023 recomenda uma política fiscal que promova o crescimento, a redistribuição e a transformação produtiva na região.

Durante o Seminário Regional de Política Fiscal em maio de 2023, o Secretário Executivo da CEPAL, José Manuel Salazar Xirinachs, sublinhou que a política fiscal dos países latino-americanos “deve contribuir não só a navegar nas necessidades e urgências do curto prazo, senão também nas transformações dos modelos de desenvolvimento no longo prazo”, o que inclui tanto o crescimento econômico como a redução das desigualdades.

No entanto, a CEPAL alerta sobre o desafiante panorama macroeconômico da região caracterizado por um incremento da dívida pública na maioria dos países, um reduzido espaço fiscal, o aumento dos custos de financiamento e um problema estrutural de crescimento econômico medíocre.  “Devemos ver a promoção do crescimento como parte integral das políticas fiscais e não como um dado externo”, argumenta o Secretário da CEPAL ao se referir ao cenário das finanças públicas da região.

Além de pactos fiscais redistributivos e uma redução da carga da dívida pública, as organizações sociais apontam à necessidade de revitalizar a agenda global de financiamento ao desenvolvimento com base em agendas comuns alinhadas com os ODS. Neste âmbito destacam o financiamento de agendas transformadoras em mudança climática, digitalização ou transição energética, que são desafios compartilhados por todos os países da região, assim como o fortalecimento das estratégias de Cooperação Sul-Sul, um espaço no qual a Ibero-América conta com uma liderança internacionalmente reconhecida.

Respeito aos direitos humanos

Uma das recomendações mais críticas do XIV Encontro Cívico Ibero-americano, uma das instâncias mais importantes de interlocução da sociedade civil com os governos, foi precisamente a urgência de fortalecer o Estado de direito e a democracia com enfoque de direitos, em um momento em que segundo dados de Civicus, grande parte dos países ibero-americanos registram restrições no espaço cívico.

Desde a Coordenadora de ONGD denunciam um recorte e debilitamento das possibilidades de ação da sociedade civil que, em muitos casos, está gestada desde o próprio poder público. “Nosso chamado a fortalecer a democracia implica que a sociedade civil não seja atacada ou criminalizada e que sejam garantidos direitos e liberdades de reunião, associação e expressão.

Nesta linha, a Declaração do XIV Encontro Cívico Ibero-americano chama, expressamente, a “acabar com a criminalização da sociedade civil, garantir os espaços para a participação cidadã e que a sociedade civil organizada possa atuar em condições de autonomia” como um ator de direito próprio na construção e seguimento das políticas públicas, porque segundo argumentam desde a Coordenadora de ONGDs “as transformações cruciais que a região requer só poderão ser alcançadas com uma sociedade civil forte e independente”.

Ainda, a sociedade civil ibero-americana pede, expressamente, que os próximos encontros cívicos sejam realizados no mesmo país em que se celebra a Cúpula Ibero-americana para garantir uma interlocução mais direta e efetiva entre as organizações sociais e os governos. Esta petição se faz extensiva à próxima Cúpula Ibero-americana de 2024 em Quito, Equador, na qual a sociedade civil ibero-americana insiste na urgência de chegar a grandes consensos para transformações decisivas que, além disso, sejam justas e garantam que os direitos sejam realidade para tod@s.