Um laboratório de política pública para as pessoas com deficiência

O Programa Ibero-americano pelos Direitos das Pessoas com Deficiência (PID) é a única experiência de Cooperação Sul-Sul neste âmbito e já soma 12 países. Sua secretaria técnica, Natalia Guala Beathyate explica as principais conquistas e desafios em entrevista com o Portal Somos Ibero-América

Um laboratório de política pública para as pessoas com deficiência

Noventa milhões de pessoas, 15% da população na Ibero-América vive com algum tipo de deficiência e, cada dia, têm de afrontar limitações de acessibilidade e discriminação em direitos tão básicos como educação, emprego, sanidade, acesso à justiça ou participação social. Uma de cada cinco famílias na Ibero-América tem a uma pessoa com deficiência entre seus membros, o que representa um enorme desafio quanto a cuidados e condições de vida.

Perante esta realidade que põe à prova a promessa da Agenda 2030 de não deixar ninguém para trás, foi aprovado na XXVI Cúpula Ibero-americana (Guatemala, 2018) o Programa Ibero-americano sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (PID), a primeira iniciativa regional de cooperação neste âmbito, que hoje forma parte do Sistema de Cooperação Ibero-americana e conta com o apoio da Organização Ibero-americana de Segurança Social (OISS) e a Organização Nacional de Cegos Espanhóis (ONCE).

O PID continua somando novos membros aos sete países fundadores. Apesar dos tempos convulsos, a crise econômica e as limitações orçamentárias, hoje, 12 países ibero-americanos apostam pelo trabalho conjunto e coordenado em áreas como inclusão educativa e laboral, acesso à justiça, sistemas de saúde pública, proteção social ou empoderamento de organizações das pessoas com deficiência.

Esta promessa de inclusão das pessoas com deficiência também se faz realidade de portas para dentro na própria administração do programa. Sua secretária técnica Natalia Guala Beathyate dedicou mais de 20 anos de sua vida e carreira profissional na melhora do dia a dia das pessoas com deficiência desde a Organização Nacional de Cegos Espanhóis (ONCE), que se encarrega da gestão técnica do programa.

Em entrevista com o Portal Somos Ibero-América, Natalia Guala Beathyate partilha avanços, conquistas e desafios deste programa, assim como dados que nos permitem entender a situação de um coletivo do qual ela mesma forma parte e que está trabalhando ativamente para o cumprimento de seus direitos.

– Por que un programa programa ibero-americano pelos direitos das pessoas com deficiência?

“A Ibero-América conta com marcos legais para a proteção dos direitos das pessoas com deficiência que estão harmonizados com os principais instrumentos internacionais como a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência ou a Declaração Universal de Direitos Humanos. No entanto, quando olhamos para o dia a dia dos mais de 90 milhões de pessoas com deficiência em nossa região, vemos que ainda persistem desafios na implementação prática em temas como educação, acesso ao mercado de trabalho, condições de acessibilidade, entre outros. Isto limita o exercício prático de nossos direitos, ainda que estejam legalmente reconhecidos”.

– Que valor acrescentado o PID oferece frente a outros espaços em matéria de deficiência?

“A nível mundial, o PID é a primeira experiência de Cooperação Sul-Sul no âmbito da deficiência e, ao mesmo tempo, um laboratório de política pública para avançar no cumprimento de nossos direitos.  E é muito importante dizer que fazemos isto pondo em prática os valores e metodologias da cooperação ibero-americana: horizontalidade, flexibilidade, participação e trabalho em rede.

Consolidamos um espaço de trabalho multilateral no qual partilhamos experiências, tanto do que funcionou como daquilo que não. Isso nos permite conhecer, replicar e escalar as experiências exitosas e aprender daquilo que não funcionou em outros países.

Este espaço de trabalho se articula com diferentes âmbitos das administrações públicas nos países, mas também em alianças com outros programas de cooperação ibero-americana como o Programa de Idosos com o que trabalhamos temas de saúde mental, o Programa Ibero-americano de Alfabetização ao Longo da Vida (PIALV) com o que reforçamos a área de educação de jovens e adultos com deficiência e com o Programa Ibero-americano de Acesso à Justiça (PIAJ) desenvolvemos formação a operadores jurídicos em matéria de deficiência, por mencionar alguns exemplos.

Em quase quatro anos de vida, o programa gera cada vez mais interesse na região. Frente aos primeiros 7 países que iniciaram em 2019, hoje participam 12 países: Andorra, Argentina, Chile, Costa Rica, Equador, Espanha, Guatemala, México, Panamá, Paraguai, República Dominicana e Uruguai.

– Este interesse da parte de mais países pode significar um “momentum” de vontade política para avançar no cumprimento dos direitos das pessoas com deficiência?

“Claramente há um interesse em nossa região por avançar rumo a sociedades mais justas e inclusivas no marco da Agenda 2030. A deficiência é hoje um tema transversal, mais além do signo político. Na Ibero-América vimos que, apesar das mudanças de governo ao longo dos últimos anos, não só se manteve a participação no programa, senão que seguiram se somando países. A futuro, esperamos alcançar a Comunidade Ibero-americana em seu conjunto. 

Apesar das mudanças de signo político ao longo destes anos, a participação dos países no Programa de Deficiência aumentou. A futuro esperamos contar com todos os países da região.

– Apesar da vontade política, os direitos ainda não se cumprem. Por quê?

“Fazer realidade os direitos das pessoas com deficiência é um caminho longo, mas existe a convicção, não somente de que é necessário, senão também de que é possível. 

Em nossa região foram dados passos importantes na implementação de políticas públicas, mas persistem importantes brechas. Por exemplo, 15% da infância com deficiência não acessa a educação, 50% das pessoas com deficiência em idade de trabalhar não trabalham nem procuram emprego. Temos também muito trabalho pendente no âmbito da acessibilidade, tanto desde o ponto de vista físico como do ponto de vista da comunicação e, logicamente, desde o ponto de vista das atitudes, da construção social ao redor da deficiência. Também há um trabalho pendente com respeito à informação estatística fiável sobre as pessoas com deficiência para que as diferentes administrações possam usá-la eficientemente.”

Estes desafios estão em linha com os seis âmbitos de atuação do Programa Ibero-americano de Deficiência: compilação e gestão de dados; acesso à justiça e reconhecimento igualitário perante a lei; acesso e melhora da educação em um sistema educativo inclusivo; direitos laborais e sindicais a nível público e privado; participação das pessoas com deficiência e acesso ao sistema de saúde. São áreas de trabalho que, por sua vez, se alinham com mais da metade dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 (fim da pobreza, saúde, educação, igualdade de gênero, trabalho digno, redução das desigualdades, paz e instituições sólidas e alianças para o desenvolvimento).

– Como a crise COVID impactou a vida das pessoas com deficiência?

“No momento de crise as pessoas com deficiência foram as primeiras em perder seus empregos, as primeiras em ficar fora das possibilidades da educação à distância, as últimas em receber atendimento sanitário durante a pior parte da crise da COVID. Isto evidenciou que, apesar de termos avançado em inclusão e direitos, estes avanços não estão completamente consolidados.

A dureza da crise nos levou a entender que a recuperação deve se fazer com uma perspectiva muito mais inclusiva, muito mais justa para nos assegurar que perante uma nova crise ou ante um novo golpe, não voltemos a ficar para trás.

A recuperação da crise deve ser mais inclusiva e justa, tendo em conta as pessoas com deficiência

Com esta visão, o programa participou nos diferentes diálogos setoriais que os países membros colocaram em funcionamento para que nossa voz e perspectiva seja incorporada nos diferentes planos de recuperação e reconstrução pós-pandemia.

Queremos que a deficiência seja transversal às políticas públicas generalistas, independentemente de que também se trabalhe em políticas específicas. Necessitamos que as diferentes áreas dos governos incluam um enfoque de deficiência em suas políticas e ações. Assim, em um futuro, pode ser que já não tenhamos de fazer políticas diferenciadas”.

Ao final de um diálogo que convida a olhar para o futuro, perguntamos a Natalia Guala Beathyate por que os direitos das pessoas com deficiência são importantes também para a sociedade em seu conjunto?

“As pessoas com deficiência temos um potencial imenso a oferecer para construir sociedades diversas e plurais, nas quais o que é diferente não se perceba como ‘algo a reparar’, senão como um potencial, um talento, umas experiências e umas ideias que têm muito a aportar.

Essa é, precisamente, a Ibero-América com a que sonha Natalia junto aos mais de 90 milhões de pessoas com deficiência e suas famílias, tal como ela mesma afirma nesta vídeo-mensagem.