“O apoio internacional é crucial para uma recuperação com transformação”

A próxima Cúpula Ibero-americana busca impulsionar uma nova arquitetura financeira internacional que apoie uma recuperação sustentável para afrontar os desafios estruturais de desenvolvimento na América Latina. O ministro de Fazenda da República Dominicana, Jochi Vicente avança no Portal Somos Ibero-América as chaves esta proposta.

“O apoio internacional é crucial para uma recuperação com transformação”

A falta de liquidez e as dificuldades de acesso a financiamento internacional para a recuperação econômica complicam o caminho para fazer realidade a promessa da próxima Cúpula: “Uma Ibero-América justa e sustentável”. Os países da América Latina, a região mais afetada pela pandemia em termos socioeconômicos, chegam a este encontro presidencial com umas finanças públicas debilitadas pelo gasto extraordinário que a pandemia supôs.

Além disso, a onda expansiva da guerra na Ucrânia e as consequentes tensões inflacionárias, crise energética e ruptura das cadeias de subministro agravam os desafios estruturais que a região já vinha arrastando nos âmbitos social, produtivo e ambiental.

Perante este complicado panorama, os países ibero-americanos têm advogado em diferentes foros multilaterais por melhorar as condições de financiamento externo para a recuperação econômica e social, um clamor que se plasmou ao mais alto nível político durante a passada Cimeira Ibero-americana de Andorra em 2021, com o acordo de promover um instrumento financeiro para os países em desenvolvimento, incluindo os países de renda média. 

Quase dois anos depois, sob a liderança da Secretaria Pro Tempore da Conferência Ibero-americana, tal compromisso se converte em “Proposta para uma nova Arquitetura Financeira”. O ministro de Fazenda da República Dominicana, Jochi Vicente compartilha nesta entrevista com o Portal Somos Ibero-América, as chaves da proposta que se prevê aprovar no encontro presidencial do próximo dia 25 de março.

Contexto econômico difícil

Em termos econômicos, como a região chega à XXVIII Cúpula Ibero-americana? 

“A XXVIII Cúpula Ibero-americana é celebrada em um entorno macroeconômico convulso e de persistentes pressões orçamentárias para os países da América Latina e o Caribe, com um menor crescimento econômico previsto para 2023: 1,8% regional segundo o FMI, que representa a metade do crescimento registrado em 2022.

O limitado espaço fiscal da maioria dos governos latino-americanos não só reduziu sua capacidade para enfrentar os choques externos e proteger a cidadania da crise do custo de vida, senão que também reduziu sua capacidade de executar projetos necessários para catalisar o desenvolvimento e fechar brechas estruturais, condicionando, pro sua vez, a trajetória ascendente da dívida pública.

Os países latino-americanos chegam à próxima Cúpula em um contexto macroeconômico complicado, limitado espaço fiscal, maior endividamento e pressão pelo lado do gasto

Esta situação expõe ainda mais os países de baixos e médios ingressos, em particular os que têm importantes necessidades de financiamento a curto prazo em dólares, aos riscos derivados do endurecimento das condições financeiras globais, às maiores pressões cambiárias e às fracas expectativas de crescimento econômico.

Apesar destas condições globais tão desafiantes, as qualificações de risco soberano se mantiveram estáveis, graças às expectativas inflacionárias bem ancoradas, um manejo proativo da política monetária e a relativa flexibilidade dos mercados cambiários na América Latina. Isto permitiu afrontar os choques externos e financiar as operações dos governos em momentos de grande pressão pelo lado do gasto para combater a erosão do poder de compra da cidadania e conter revoltas sociais.”

O países latino-americanos podem acometer “por si sós” uma recuperação socioeconômica nas condições descritas? 

“O momento atual apresenta muitos desafios para a América Latina, com previsões de desaceleração do crescimento e um contexto social que demanda uma transformação sistêmica que abrange diferentes perspectivas. Por exemplo, a pandemia evidenciou a necessidade de contar com sistemas de saúde mais resilientes e de fechar brechas estruturais que perpetuam a desigualdade social. Além disso, a América Latina é uma das regiões que serão mais afetadas pelos efeitos da mudança climática, o qual demanda uma solução conjunta e integrada.

Evidentemente, tanto a pandemia como a crise inflacionária pressionaram consideravelmente as finanças públicas dos países da região, pelo quê, o apoio da comunidade internacional e organismos multilaterais será crucial para consolidar a implementação destas políticas públicas em um contexto de sustentabilidade fiscal”.

A “cilada” do ingresso médio

Em termos desse tão necessário financiamento internacional, qual é a disjuntiva dos países de ingresso médio na América Latina?

“O critério do nível de ingresso que, tradicionalmente, foi utilizado pelos organismos internacionais para categorizar os países para o acesso aos recursos acarreta consequências importantes para os países de renda média, já que se presume equivocadamente que este grupo tão heterogêneo de países tem menores necessidades, algo que, por sua vez, limita seu acesso ao financiamento multilateral, tão necessário para apoiar seu desenvolvimento.

Esta situação empurrou os países de renda média a virem ao mercado global de capitais para contratar financiamento em condições menos vantajosas que as que obteriam com um organismo multilateral ou bilateral.

El ministro de Hacienda de República Dominicana, Jochi Vicente avanzó las claves de la propuesta de arquitectura financiera que se presenta en la Cumbre

A América Latina está composta por grande quantidade de países chamados “de renda média”, uma classificação que não captura a complexa natureza multifacética do desenvolvimento

Este critério arbitrário que prioriza o crédito em função do nível de renda per capita dos países não captura diferenças importantes nas condições estruturais, sociais e econômicas, nem os diferentes obstáculos ao desenvolvimento e necessidades, dado que as médias tendem a esconder as profundas desigualdades tanto entre os países como dentro dos países, contribuindo a ampliar as brechas de desenvolvimento entre eles.

Em sua condição de região composta por grande quantidade de países catalogados como de ‘renda média’, a América Latina se vê especialmente afetada por tal classificação, que não captura a complexa natureza multifacética do desenvolvimento. Fechar estas brechas com respeito aos países mais avançados requer, portanto, de maior apoio multilateral e bilateral, e de enfoques que priorizem o acesso ao crédito e aos recursos em base aos desafios estruturais e as áreas vulneráveis existentes nos heterogêneos países de renda média.”

É compatível a disciplina fiscal com a necessidade de injetar recursos às economias latino-americanas mediante financiamento internacional, multilateral e/ou alianças público-privadas?

“Perante o complexo panorama enfrentado pelos países com limitados espaços fiscais e altos níveis de endividamento por causa da pandemia e as repercussões inflacionárias da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, se afastar da disciplina fiscal não é uma opção.

É requerido um manejo fiscal prudente e apegado ao marco da sustentabilidade para fomentar a confiança dos investidores e manter a estabilidade econômica a longo prazo. Isto envolve tanto manter delimitados os objetivos de déficit e as métricas de endividamento como realizar avanços na redução da evasão e da fraude fiscal, assim como a manutenção de uma estratégia de priorização do gasto público que potencialize o impacto da política fiscal. Agora, mais do que nunca, devem ser feitos esforços para canalizar com maior eficácia e eficiência os recursos para apoiar as operações dos governos. Desta forma podem ser criados os espaços para financiar o fechamento das brechas de infraestrutura, fomentar o investimento, propiciar a inovação, mitigar a mudança climática, e impulsionar o crescimento a longo prazo”.

Nova arquitectura financeira

Em sintonia com os acordos da Cimeira de Andorra em 2021, a República Dominicana defende uma proposta para “uma nova arquitetura financeira”. Quais são eixos desta proposta que será discutida na próxima Cúpula?

“A Proposta de Arquitetura Financeira busca explorar novas opções de financiamento que sejam mais equitativas para que a região possa enfrentar desafios como a pobreza, a fome, a crise climática e a desigualdade. Esta proposta se sustenta nos seguintes pontos cruciais:

  • Solicitar aos organismos multilaterais a revisão das condições dos financiamentos, além da avaliação do incremento em sua capacidade de outorgar empréstimos e de ampliar os limites de acesso aos mesmos.
  • Promover a avaliação de novas emissões de Direitos Especiais de Giro (DEG) por parte do Fundo Monetário Internacional, além de dotar os bancos multilaterais de Desenvolvimento da capacidade de ser encarregados e canalizadores autorizados destes Direitos.
  • Fomentar a criação de políticas de alcance sistêmico que promovam a integração regional no combate contra crises sistêmicas múltiplas e interconectadas, mediante a facilitação de instrumentos financeiros inovadores como a troca de dívida por natureza, que evitem exacerbar os níveis de endividamento dos países em desenvolvimento.
La VII Reunión Iberoamericana de Ministros de Hacienda, celebrada el 26 de mayo de 2021 afinó la propuesta para una nueva arquitectura financiera.

A Proposta de Arquitetura Financeira busca explorar novas opções de financiamento mais equitativas para que a região possa enfrentar melhor os desafios estruturais

O que é necessário para que os Direitos Especiais de Giro (DEGs) do Fundo Monetário Internacional sejam uma ferramenta mais útil para os países de renda média?

“Seria crucial uma recanalização destes instrumentos desde países que não os necessitam para países que sim os requeiram, algo que desde a Ibero-América já propusemos na Reunião Ministerial de Fazenda e Economia em maio de 2021, na qual o presidente Luis Abinader se reuniu com a Secretaria-Geral Ibero-americana.

Em linha com esta proposta, em outubro de 2022, o FMI pôs em operação o Fundo Fiduciário para a Resiliência e a Sustentabilidade (RST, por suas siglas em inglês), algo que segundo as autoridades do FMI, amplificará o efeito da assignação geral de DEGs de US$650 bilhões implementada em 2021, ao canalizar recursos de membros economicamente mais fortes aos países com maiores necessidades. Isto permitirá uma redistribuição mais justa destes fundos.”

Os Direitos Especiais de Giro são ativos de reserva internacional criados pelo FMI para enfrentar necessidades de liquidez de longo prazo dos países membros. Os DEGs são utilizados como unidade contábil para as transações do FMI e alguns outros organismos internacionais.

Que papel poderiam ter os bancos multilaterais e regionais de desenvolvimento para injetar liquidez às economias latino-americanas? 

“Os bancos multilaterais e regionais de desenvolvimento poderiam ter um papel mais ativo no financiamento da recuperação. Dotar estas instituições da capacidade de participar como encarregados e canalizadores dos DEGs poderia agilizar seu uso favorável pelos países com maiores necessidades, especialmente afetados pela mudança climática ou por situações de vulnerabilidade. Para isso, é necessário adequar seu modelo de negócio e financiamento para cumprir com sua missão da forma mais eficiente possível.

Desde o atual governo da República Dominicana, reconhecemos que a dívida com organismos multilaterais poderia ser muito menos onerosa do que as demais alternativas e aportar maior transparência à política fiscal. Por isso, traçamos como um alinhamento crucial para o manejo de dívida a médio prazo ao aumentar a participação deste tipo de dívida na medida em que suas condições contratuais o permitam. As responsabilidades para conferir aos bancos multilaterais que propusemos acima, facilitariam a continuação de condições contratuais favoráveis para a República Dominicana e para os demais países da região para um melhor financiamento da recuperação.”

Uma visão de futuro

Conseguir uma nova arquitetura financeira internacional parece um objetivo, quanto menos, ambicioso. A Ibero-América tem margem de manobra para impulsionar semelhante reforma?

“Na Cimeira Ibero-americana de 2021, os Chefes de Estado da região fizeram um chamamento ao G20 e às instituições financeiras internacionais para uma revisão das condições financeiras para afrontar crises sistêmicas e, assim, facilitar o financiamento da recuperação.

Iniciativas como o Marco Comum do Tratamento da Dívida, que tem por objetivo abordar o problema das dívidas insustentáveis que muitos países enfrentam após a pandemia da Covid-19, foram posteriormente acordados pelo G20. A existência de iniciativas como esta vai em linha com nossas propostas, pelo quê, nosso papel passa a ser o de propor mecanismos para acelerar sua implementação, ao mesmo tempo que são propostas medidas para fortalecer outras iniciativas como a de transparência da dívida.

Entendendo que estas propostas financeiras têm como fim último um desenvolvimento verdadeiramente justo e sustentável que transforme vidas, o que está em jogo na XXVIII Cúpula Ibero-americana?

Os altos níveis de endividamento por causa da pandemia, a desaceleração econômica, menores perspectivas de mobilização de ingressos tributários, maior demanda de recursos para atender demandas sociais, maiores pressões cambiárias e custos de financiamento aprofundam a vulnerabilidade das nossas economias. Neste contexto, a XXVIII Cúpula Ibero-americana é uma oportunidade para avaliar, propor e impulsionar formas inovadoras de levantar os recursos financeiros.

Tenho a convicção de que a Ibero-América conta com a vontade para ser um ator de mudança, com força suficiente para transformar o mundo, graças a espaços como esta Cúpula. Os chamamentos pactados nesta reunião buscam apoiar os nossos países para aliviar o estresse que a pandemia impôs sobre as contas fiscais e sobre a capacidade dos distintos governos de responder efetivamente às demandas requeridas pela sociedade. Este processo sempre deve ter como eixo transversal a sustentabilidade fiscal para assegurar a estabilidade macroeconômica dos nossos países.

 Conseguir isto em um mundo cada vez mais interconectado é um desafio que assumimos, e que requer o contínuo apoio dos organismos multilaterais e da comunidade internacional”.

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