Garantir os direitos para uma digitalização centrada nas pessoas

A Ibero-América avança para se converter em uma das primeiras regiões do mundo em contar com uma Carta de Princípios e Direitos Digitais que estabeleça padrões comuns para proteger as pessoas no entorno virtual e regular tecnologias emergentes. Este será um dos temas cruciais da próxima Cúpula Ibero-americana.

Garantir os direitos para uma digitalização centrada nas pessoas

A linha entre o analógico e o virtual se desvanece à medida que ambos os entornos se entrelaçam em uma sociedade cada vez tecnológica. A digitalização abre novas formas, espaços, ferramentas e oportunidades para trabalhar, nos formarmos, expressarmo-nos, participar, inovar, aceder à justiça, à saúde ou à educação.

Esta transformação digital imparável é hoje uma porta de acesso a direitos que existem tanto no mundo digital como no analógico. Portanto, tecnologia e direitos se entrelaçam e apresentam tantas possibilidades como perguntas. O que falta para garantir um exercício pleno dos direitos em entorno digital para todas as pessoas? Como atuar quando a proteção de um direito interfere com o exercício de outro? Como promover uma cidadania digital responsável e ética? O acesso tecnológico é um direito em si mesmo?

Estas e outras questões são analisadas em uma nova edição do Portal Somos Ibero-América que publicamos na conta regressiva para a XXVIII Cúpula Ibero-americana, onde a proteção dos direitos humanos na era digital será um dos eixos cruciais.

Em um momento em que a transformação digital avança mais rápido do que a regulação, o encontro presidencial previsto para 24 e 25 de março busca aprovar uma Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos Digitais, um roteiro comum para aplicar, ao mundo digital, os direitos humanos já reconhecidos no mundo analógico, assim como elaborar novos direitos de acordo com tecnologias emergentes como a inteligência artificial ou as neurotecnologias.

“A aprovação de uma Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos Digitais converteria a Ibero-América em uma das primeiras regiões do mundo em contar com padrões comuns para uma digitalização inclusiva, justa e centrada nas pessoas”, afirma o Secretário-Geral Ibero-americano, Andrés Allamand.

A Ibero-América poderia se converter em uma das primeiras regiões do mundo em contar com padrões comuns para uma digitalização centrada nas pessoas

Nessa mesma linha, a Secretaria de Estado de Digitalização da Espanha, Carme Artigas desataca que a “Ibero-América se encontra ante a oportunidade histórica de protagonizar um desenvolvimento tecnológico ético e comprometido com os direitos humanos”.

Por sua parte, a Subsecretaria de Serviços e País Digital da Argentina, Ana Carina Rodríguez, opina que no momento atual “é vital acordar umas bases e objetivos comuns sobre os direitos digitais que os Estados devemos garantir a todos os níveis”.

A digitalização esteve presente nos debates da Conferência Ibero-americana, mas o interesse se intensificou com o desafio apresentado pela pandemia COVID. A Declaração da Cimeira Ibero-americana de Andorra em 2021 adverte sobre a importância de “alcançar uma sociedade digital inclusiva, regulada, segura e transparente para um desenvolvimento sustentável que permita eliminar as brechas digitais entre os países e dentro deles”.

Direito à inclusão digital

A face B das imensas possibilidades da transformação digital para as pessoas, economias e países é a das portas que se fecham para aqueles que carecem de conectividade, dispositivos para utilizar a tecnologia ou os conhecimentos para aproveitá-la.

Os dados mostram como o frenético ritmo do avanço tecnológico ameaça em aprofundar as desigualdades preexistentes, somando perdedores à sociedade digital. Portanto, a Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos Digitais coloca especial ênfase na inclusão digital e seu potencial para lutar contra a pobreza e a desigualdade.

É estabelecido, além disso, que a inclusão digital é, em si mesma, um direito porque abre a porta ao exercício de direitos fundamentais como a saúde, a educação ou o acesso à justiça. Portanto, a transformação digital, assinala a Carta, deve pôr no centro as pessoas, não deve deixar ninguém para trás, nem criar outras brechas.

A inclusão digital é em si mesma um direito porque abre a porta ao exercício de direitos fundamentais como a educação, a saúde ou o acesso à justiça

Sobre este particular, José David Montilla, Vice-ministro de Agenda Digital da República Dominicana, Secretaria Pro Tempore da Conferência Ibero-americana, assegura: “pretendemos que a inclusão digital permita o fechamento das brechas existentes e evitar novas, considerando uma atenção especial à conectividade em condiciones acessíveis e de qualidade”.

Quem são os excluídos da digitalização? Pessoas de baixos ingressos, que vivem zonas rurais, mulheres, coletivos indígenas e afrodescendentes, assim como pessoas com deficiência são as faces da exclusão e o analfabetismo digital na América Latina, onde 32% da população vive de costas para as novas tecnologias, segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).

Reduzir a brecha digital de gênero também é um grande desafio em uma região onde 4 de cada 10 mulheres não está conectada e/ou não pode custear a conectividade  uma realidade que exclui mais de 89 milhões de mulheres da transformação digital, segundo dados da Aliança Regional para a Digitalização das Mulheres na América Latina e o Caribe.

 

Ciudadanía digital: derechos y obligaciones

Tão importante como o acesso tecnológico para acabar com a desigualdade é a consciência, por parte da população, de seus direitos no plano virtual, entendendo que estes acarretam também responsabilidades. Trata-se de um passo necessário para uma sociedade digital que não só seja tecnologicamente avançada, senão civicamente responsável.

A isto aponta o projeto Cidadania Digital que o Uruguai inicializou, um dos países com melhores índices de penetração e uso da Internet na Ibero-América.

Em um entorno virtual, no qual muitas vezes se desfigura a linha entre o legítimo e o ético, a Agência de Governo Eletrônico e Sociedade da Informação (AGESIC) do Uruguai impulsiona um uso responsável, reflexivo e crítico das novas tecnologias, assim como práticas positivas de uso e convivência na Internet.

O tema não é menor, dada a velocidade na qual os conteúdos digitais podem se propagar, a permanência das pegadas digitais e as tensões que a transformação digital implica para o exercício de direitos como a privacidade, a liberdade de expressão ou a proteção dos dados.

Perante a crescente dependência de tecnologias digitais que nos acompanham a todas as partes, como evitar a desinformação, discursos de ódio, conteúdo ilegal ou daninho on line? Como proteger a infância e a adolescência perante estes riscos?

Como evitar a desinformação, discursos de ódio, conteúdo ilegal ou daninho on line? Como proteger a infância e a adolescência perante estes riscos e promover atitudes reflexivas e positivas na Internet?

Estas reflexões levam necessariamente a fazer perguntas sobre o tipo de sociedade que queremos e a que estamos construindo na prática. “Queremos uma sociedade que utiliza a tecnologia ou uma sociedade adormecida que abdica na tecnologia, onde esta decide tudo?”, se pergunta desde a Espanha a Secretária de Estado Digitalização, quem insiste que há de se pôr uns limites éticos à tecnologia, algo que se alcança com “uma regulação inteligente que não mate a inovação”.

Regular as tecnologias disruptivas

Em 2021, o Chile se convertia no primeiro país do mundo em contar com uma lei para regular o uso das neurotecnologias e, portanto, consagra a nível constitucional a proteção dos neurodireitos tendo em conta o potencial impacto sobre a saúde das pessoas que pode ter um uso inapropriado. Ainda, é modificada a Constituição chilena para estabelecer “um desenvolvimento científico e tecnológico ao serviço das pessoas”.

A Espanha, por sua parte, aprovou em julho de 2021 sua própria Carta de Direitos Digitais que protege e adapta ao entorno digital os direitos e liberdades já existentes no mundo físico, mas também promove novos direitos no plano virtual como o de não ser microssegementado ou rastreado, o direito à cibersegurança, à desconexão ou a herança digitais.

Ainda assim, a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital de 2021 estabeleceu direitos e deveres entre o Estado e os cidadãos, transladando ao entorno digital direitos como a liberdade de expressão ou a privacidade e acrescentando novos como o direito à neutralidade da rede, o direito à vontade digital e o direito ao esquecimento. Também o Peru submeteu à consulta pública o rascunho de sua Carta Peruana de Direitos Digitais apresentado em julho de 2022 como parte de sua estratégia de transformação digital.

Estes avanços a nível ibero-americano demostram que existe cada vez maior vontade desde os Estados em avançar em novas legislações, políticas e estratégias para a proteção dos direitos humanos e liberdades individuais no entorno virtual, não só perante uma digitalização que avança a uma velocidade maior que a regulação, senão perante tecnologias que ainda estão em desenvolvimento e cujas implicações e riscos quase não são conhecidas.

Sobre este último aspecto, a UNESCO emitiu em 2021 a Recomendação sobre a Ética da Inteligência Artificial aprovada pelos 193 estados membros e que abrange a pesquisa, o desenvolvimento, a implementação e a avaliação das aplicações de IA.

Tal como resume em seu artigo publicado nesta edição, Gabriela Ramos, diretora adjunta de Ciências Humanas e Sociais da UNESCO e Ángel Melguizo, assessor para a América Latina nesta matéria, hoje é urgente impulsionar uma “inteligência artificial ética por projeto, com normativas sólidas e que os governos tenham as capacidades necessárias para sua supervisão”.

A inteligência artificial se “alimenta” dos dados pessoais, pelo quê, a proteção destes é outra das grandes áreas de ação para os governos na Ibero-América. Sobre este aspecto, a Rede Ibero-americana de Proteção de Dados (RIPD) sublinha a necessidade de “um entorno digital seguro e acessível que só pode ser garantido com regulamentos e normativas supranacionais e com a garantia da atuação de autoridades nacionais de proteção de dados independentes”.

O caráter global da Internet obriga a pensar que a proteção dos direitos humanos no entorno digital não conhece fronteiras e mais além das legislações nacionais que possam ser desenvolvidas e o nível de adiantamento tecnológico de cada país, se trata de um desafio compartilhado.

O caráter global da Internet obriga a pensar que a proteção dos direitos humanos no entorno digital não conhece fronteiras

A próxima Cúpula Ibero-americana, a Presidência espanhola da União Europeia no segundo semestre deste ano, junto aos desenvolvimentos legislativos a ambos os lados do Atlântico e a crescente vontade política dos governos ibero-americanos, abre uma janela de oportunidade para desenvolver um roteiro comum, em forma de Carta de Princípios e Direitos Digitais, que pode orientar o desenvolvimento de legislações nacionais.

No momento de encaminhar uma recuperação da crise COVID, a digitalização pode ser uma alavanca de transformação e desenvolvimento, sempre que esteja centrada nas pessoas e orientada ao bem comum.

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